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Mundo vazio: Enfrentando a realidade através de Dark Souls

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Por Tiago Ramos

Dentre os apreciadores de boas histórias, um dos principais estímulos à sua paixão é o tal do escapismo. A possibilidade de desprender-se deste mundo e ganhar acesso a outros, não necessariamente melhores mas sempre mais interessantes. É bastante comum, ainda, que as raízes deste sentimento nasçam na infância, quando a imaginação não conhece limites e a vida é percebida como algo repleto de possibilidades.

Com o passar dos anos, entretanto, o desligamento da realidade — ao menos pela via da ficção — torna-se consideravelmente mais difícil. As histórias já não nos fascinam ou surpreendem como antes, dificultando o ato de nos perdermos em nossas próprias mentes. Já não somos mais tão inocentes, afinal. Ao mesmo tempo, a vida adulta é repleta de pequenos e recorrentes problemas que demandam atenção de forma permanente. Qual foi a última vez em que você conseguiu esparramar-se no canto favorito de sua casa e aproveitar a narrativa em suas mãos (ou na tela mais próxima) sem ser interrompido para resolver algum assunto que não poderia esperar até amanhã?

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A entrada do Drangleic Castle, em captura de tela de Dark Souls II.

Em parte, a popularidade crescente dos videogames entre o público mais velho pode ser relacionada à forma como eles recuperam, em algum grau, essa capacidade de imersão em outros mundos. Ao invés de meramente identificar-se com o protagonista da narrativa, o jogador torna-se, ele mesmo, o herói (ou, por vezes, o vilão). Histórias deixam de ser testemunhadas e passam a ser vividas. Porém, mesmo o prazer decorrente da interatividade nos jogos termina dilapidado pelo tempo e pela experiência. Quanto mais o jogador passa a dominar a mecânica dos games, mais automática a superação de seus obstáculos se torna. Cria-se, assim, uma necessidade de tramas mais trabalhadas para prender a atenção — artigo raro no mercado, diga-se. Na falta de enredos de qualidade, o ato de jogar, para os mais habilidosos, mostra-se tão envolvente e exige tanta concentração quanto escovar os dentes.

Se imaginarmos uma escolha hipotética entre enredo e desafios como forma de absorver o público, os games da série Dark Souls (2011-2016) certamente optam pelo segundo caminho. Idealizada por Hidetaka Miyazaki como uma evolução de seu projeto anterior, Demon’s Souls (2009), a franquia da From Software pode ser apresentada para os pouco interessados em jogos eletrônicos como role-playing games (ou RPGs) de ação ambientados em um mundo medieval gótico. Já para os mais familiarizados, os games são amplamente conhecidos por sua característica fundamental, que tanto atrai quanto repele jogadores: são difíceis pra dedéu.

Acima: Trailer oficial de Dark Souls III.

Não que suas histórias sejam irrelevantes. A premissa dos dois primeiros capítulos da série — o terceiro e derradeiro episódio será lançado no ocidente no dia 12 de abril — é bastante similar: você encarna um morto-vivo (ou undead) que, como resultado de uma macumba ou outra, retém alguma consciência de si mesmo e deve cumprir algum destino glorioso nas terras onde os jogos se passam. No percurso, o herói absorve as almas dos adversários vencidos, recobrando assim um pouco de sua humanidade e tornando-se progressivamente mais forte. Caso fracasse, ele se tornará um “vazio” (ou hollow), apenas mais um dentre uma legião de zumbis que caminham sem rumo no reino.

Parece meio simplório, não? E, à primeira vista, é mesmo. Tanto no primeiro Dark Souls quanto no segundo, a sensação inicial é de que o jogador enfrenta inimigo após inimigo sem saber direito o propósito daquilo tudo. Cada local visitado, cada personagem encontrado com quem se consegue dialogar fornecem apenas fragmentos de informação. Em ambos os jogos, uma trama mais clara surge apenas em suas metades finais. Não importa. O mundo da série existe mais para ser sentido do que compreendido. Em algum ponto entre as prováveis centenas de vezes em que o jogador morrerá para chegar ao final, ele desenvolverá a percepção de que todos os elementos ao seu redor conversam entre si com absoluta coerência, e de que sua jornada se desenrola na superfície de um universo cuja história clama por ser descoberta. Ou, como sugere este ótimo artigo, talvez a experiência deva ser vivenciada não como narrativa, e sim como mito.

Difíceis lições

Seja como for, recomenda-se que o jogador deixe para ponderar sobre o enredo quando o console estiver desligado. Divagar durante o jogo certamente o levará à morte. E, em Dark Souls, não faltam oportunidades para bater as botas.

Games difíceis não são novidade na indústria. O pessoal da velha guarda certamente lembra, com grau variado de afeição, de Battletoads(1991). Há, ainda, inúmeros jogos de nave (ou shooters) que exigem reflexos de raposa para serem concluídos: as séries Gradius (1985) e R-Type (1987) são alguns bons exemplos. A aparentemente inocente franquia Mega Man (1987), por vezes, clama por um arremesso de controle na parede. De modo geral, como nos casos listados, a dificuldade dos games está relacionada a como eles requerem a) alta velocidade de resposta do jogador, face aos estímulos na tela ou b) precisão estrita nos comandos. Ou ambos. Perceba como, aqui, estamos tratando de habilidades que, se não forem inatas ao indivíduo, levam anos para serem desenvolvidas a contento.

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Majula, um raro porto seguro em Dark Souls II.

Dark Souls, apesar de pouco recomendável para quem não domina os controles do videogame da sala (se esse for o seu caso, permita-me direcioná-lo para nossas outras sugestões de jogos), trabalha com uma habilidade distinta: a do aprendizado. Para explicar melhor, precisamos apresentar algumas de suas mecânicas primeiro.

Espalhadas pelo mundo da série, o jogador encontra diversas fogueiras. Ao serem ativadas, o medidor de vida (life) do personagem é preenchido e os itens que recuperam esse medidor durante os combates (os chamados Estus Flasks), caso gastos, podem ser utilizados novamente. O herói fica, em bom português, pronto para outra. Por outro lado, todos os inimigos voltam à vida, mesmo que tenham sido vencidos antes da fogueira ser acesa. Ou seja, de nada adianta matar todos os adversários em dado cenário, livrando assim o caminho para outras áreas, e retroceder até a última fogueira descoberta para “sarar”. O trabalho de enfrentar os inimigos no percurso terá de ser feito todo de novo. Por fim, na hipótese do jogador ser morto, ele ressurgirá na última fogueira acessada, sem limite de vezes. Não há, aqui, o famoso game over.

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O agradável Gaping Dragon, cujo tórax funciona também como boca, em Dark Souls I.

Desse modo, a cada vez que o jogador retorna a uma fogueira, seja em razão de ter morrido ou por precisar recuperar seu life, ele sabe um pouco mais sobre o que o espera adiante. (Há, também, a possibilidade de tornar o personagem levemente mais preparado para os desafios, mas vamos deixar esse elemento de lado para focar no que realmente importa.) Em um game cuidadosa e detalhadamente planejado para dar cabo do herói pelo menor descuido, o conhecimento do que está à frente ganha um valor inestimável.

Isso se mostra particularmente válido nos duelos contra os vários chefes dos jogos. Toda vez que é morto por estes, o jogador domina melhor o estilo e alcance dos golpes do adversário, a velocidade do inimigo, seus (sempre raros) momentos de vulnerabilidade. De maneira mais ou menos consciente, ele passa a compará-los com os seus próprios atributos e limitações, elaborando uma estratégia de combate. Após dezenas de “YOU DIED” impressos em vermelho na tela, o tão almejado “VICTORY ACHIEVED” não vem como uma mera confirmação de conclusão da “fase”. Ele atesta que o jogador internalizou as características principais de seu adversário, aplicou esse conhecimento com vistas à realização de um objetivo — mesmo que este consista no pouco nobre “matar o desgraçado” — e, depois de muito apanhar, colheu os frutos de seu trabalho.

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As palavras mais comuns da série.

Como em um RPG, eis que aqui finalmente encontramos a chave que faz de Dark Souls uma experiência muito mais rica e complexa do que mero escapismo. O esforço vertido na derrota dos vilões diferencia o sentimento experimentado pelo jogador daquele proporcionado por outros jogos em circunstâncias semelhantes. Ao invés da sensação de ter destruído algo ou alguém — por si só, prazerosa –, a superação do obstáculo deixa, ao contrário, um sabor de construção. A satisfação de algo realizado.

Dois mundos, uma alma

Essa sensação de realização, unida à ambientação impecável, desperta reações emocionais que extrapolam os prazeres efêmeros tipicamente gerados pelos videogames. A sucessiva superação de adversidades, espalhadas ao longo das semanas normalmente necessárias para a conclusão dos jogos da série, pode gerar reflexos positivos reais na mente do jogador. Neste outro artigo, seu autor refere-se ao RPG The Elder Scrolls V: Skyrim (2012) como uma espécie de barômetro, permitindo-lhe perceber a chegada de períodos de depressão. Aplicando lógica similar, Dark Souls aproxima-se de um bálsamo — ou Estus Flask — para este e outros transtornos que acometem a alma.

Ambientados em mundos opressivos, sombrios e desprovidos de esperança, os games podem transformar-se, ironicamente, em preciosas fontes de vitórias para aqueles que sofrem de baixa autoestima ou precisam conviver com sentimentos de incapacidade. Aqui, a derrota dos chefes ou a conclusão de um cenário não são meras dádivas do acaso. Elas são conquistas obtidas com muito suor — às vezes literalmente. Acumulados ao longo do tempo, os triunfos em Dark Souls são capazes de inspirar a confiança que muitas vezes nos falta para concretizar algo no mundo real. Depois de incontáveis mortes digitais e horas de combate, talvez existam benefícios outros a serem usufruídos além de uma armadura mais robusta ou uma magia a ser utilizada contra o próximo vilão. Talvez obstáculos mais concretos já não mais pareçam tão intimidadores.

Acima: A batalha contra Ornstein e Smough, uma das mais difíceis do primeiro game.

Não é desprezível, ainda, o efeito psicológico do tamanho dos vilões, relativamente ao personagem controlado pelo jogador. Enquanto o herói possui estatura próxima a de uma pessoa comum, a imensa maioria dos chefes de fase lembra as criaturas de Fúria de Titãs, quase nunca cabendo na tela de corpo inteiro. Mesmo que seja o herói-simulacro a agir no game, é seu manipulador quem de fato sobrepuja adversários dezenas de vezes maiores do que ele. Também sob essa ótica, cria-se na mente do jogador uma sensação de empoderamento, de capacidade de superação de empecilhos à primeira vista impossíveis de serem contornados.

Por mais cruel que seja, Souls guarda uma diferença fundamental quando comparado com a realidade: ele funciona de forma justa. Não raro, em uma sessão de jogo, gritos e palavrões carregados de frustração são proferidos, geralmente envolvendo as progenitoras dos monstros, orifícios diversos, lanças e espadas. Quebrar um controle, seja em um acesso de raiva ou por pressionar os botões com força excessiva em um momento de tensão, é quase um rito de passagem. Apesar disso, o jogador dificilmente conseguirá culpar a sorte, ou atribuir ao software uma trapaça em seu desfavor. A física dos cenários e as mecânicas de combate foram detalhadamente planejados para recompensar a observação atenta e o acúmulo de experiência. O jogador sabe — ou ao menos sente — que seus fracassos pontuais, tais quais suas vitórias, são atribuíveis apenas a ele próprio. Ainda que a vida não opere calcada nos mesmos parâmetros de justiça, a responsabilização do indivíduo pelos seus sucessos e derrotas constitui uma forma de pensar salutar também no mundo real.

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O reino de Dark Souls I, Lordran, em belíssima arte por Judson Cowan.

Quando conectados à internet, os jogos da série a todo momento mostram ao jogador fantasmas ao seu redor, que desaparecem tão rapidamente quanto surgem. Trata-se de outras pessoas como ele, que transitaram por aquele mesmo local em sua jornada ou se encontram no mesmo ponto do jogo naquele exato momento. É possível, ainda, que esses vultos se solidifiquem em sua tela, dispostos a ajudar ou, como é mais comum, invadindo a sua realidade para assassiná-lo. Na mitologia de Dark Souls, o fenômeno é explicado por personagens como distorções no fluxo do tempo, permitindo que mundos paralelos ou espíritos de outras eras tornem-se ameaças ou auxílios reais, presentes, para o herói. Não seria absurdo acreditar, portanto, que nosso mundo possa ser enxergado como mais um dentre os capazes de entrar em contato com a realidade do game. E, ao fazê-lo, alimente as nossas almas, preenchendo e fortalecendo-nos na eterna busca por sentido em um mundo vazio.

Dark Souls pode ser jogado em PCs e nos consoles PlayStation 3, PlayStation 4, XBox 360 e XBox One. Nem todos os capítulos da trilogia estão disponíveis para todas as plataformas listadas.

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Sobre Tiago Ramos (8 artigos)
Não conhece ontem algum, não admite o presente e para quem o amanhã é esquecimento.

3 comentários em Mundo vazio: Enfrentando a realidade através de Dark Souls

  1. Eu sou um daqueles que “pra esquecer a realidade” mergulho no mundo virtual dos games, assim como muitos adolescentes que ficam no seu mundo de faz de contas nas redes sociais. Uns sábios estudiosos irão dizer que isso tudo é algo que tem que ser evitado ou minimizado, pois deixamos as relações sociais de lado e entramos no mundo de faz de contas. Oras, o nosso dia a dia já é uma hipocrisia. Quem não tem aquele chefe chato, mas que você sempre dá um bom dia com aquele sorriso Colgate? ; ou aquela vizinha insuportável , arrogante e pedante mas que você não demonstra o seu real sentimento? Vivemos no mundo da falsidade também. Então eu prefiro o mundo virtual onde eu posso ser o Senhor dos Mundos, dar porrada em quem não me agrada, matar os monstros feios e malvados. E daí? Entre um e outro, prefiro este meu mundinho dos games porque dessa vida eu já estou de saco cheio! A série Dark Souls é muito boa, apesar da demora em se familiarizar com o jogo no início e a dificuldade propriamente dita, mas vale a pena passar horas e horas de entretenimento. Diversão garantida! Vale a pena jogar quem nunca experimentou. Ótima matéria como sempre no Salsaparrilha. Parabens!
    P.S: Fica a dica aqui neste blog uma resenha do Bloodborne no futuro, outro fantástico jogo que merece ser jogado pelos fã de games.

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  2. Fabio Miyazaki // 6 de maio de 2016 às 17:11 // Responder

    Análise muito boa do game. Gostei muito. Recomendo também pra quem ainda não jogou a série e a leitura deste blog. Parabéns!

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  3. O PERSONAGEM em Dark Souls sobe de level ao mesmo tempo que o JOGADOR também sobe!!!!! isso é genial! O player Evolui! A evolução do personagem não é tão significativa assim, mesmo um boneco level alto pode morrer facilmente se for descuidado no primeiro mapa… que outro jogo proporciona isso? Agora, a evolução como jogador, o domínio dos movimentos do inimigo e da sua arma isso sim faz diferença. E é isso que contribui para que esse jogo seja um marco. Ele não deve ser “apenas” RECOMENDADO por ser “inacessível ou “excessivamente difícil” na real, paradoxalmente, é exatamente por isso que ele deveria ser obrigatório.
    O game é um dos melhores na minha humilde avaliação. Análise perfeita sobre Dark Souls neste Blog. Recomento a todos pra quem ainda não jogou e tambem a leitura desse artigo que está nota 10!! Parabéns!!

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