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Metamorfoses ambulantes

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A tempestade de insultos racistas dirigidos à comediante Leslie Jones (da trupe do Saturday Night Live), na semana de estreia de Caça-Fantasmas (Ghostbusters, 2016), foi o nadir de um ano inteiro de impropérios enfrentados pela equipe do filme. Motivo: a refilmagem do diretor Paul Feig substituía os heróis originais de 1984 por um elenco feminino. Mal a produção fora anunciada, a indignação virtual já tomava corpo sem que maiores detalhes tivessem sido revelados. O foco era sempre a mudança de gênero.

Este não foi o primeiro caso de comoção ante a transformação de personagens famosos da cultura popular, apenas a última evidência de que o fã moderno é um potencial recruta do Estado Islâmico. Também não foi a primeira vez em que um João da ficção virou Maria ou sei-lá-o-quê. 

Em 2004, Ronald D. Moore e David Eick produziram uma releitura da série de ficção científica Battlestar Galactica em que aproveitavam quase que somente a premissa e os nomes dos personagens. A transformação de um deles (o piloto Starbuck) em uma mulher provocou indignação em menor tamanho que a dirigida contra as atrizes de Feig – talvez porque a internet ainda estivesse em sua infância de trolling e bullying. No entanto, o resultado calou os críticos: de Guerra nas Estrelas de segunda, Battlestar Galactica tornou-se uma sofisticada meditação sobre poder, fé e identidade.

As histórias em quadrinhos de super-heróis possuem uma pequena tradição de recauchutagem, especialmente na Marvel Comics. Isto é mais comum em personagens nos quais a metamorfose é uma das características principais. Veja-se o caso do Hulk, o misto de Frankenstein e sr. Hyde da editora. Ao longo de seus mais de 50 anos, já foi verde, cinza, vermelho; animalesco e racional; teve como alter ego um cientista adulto (Bruce Banner), um roqueiro jovem (Rick Jones), um general velho (Thaddeus Ross). Na sua encarnação mais recente, obra do roteirista Greg Pak, o Hulk é a versão verde, controlada e marombada do garoto-prodígio Amadeus Cho, de origem asiática. (Existem também Mulheres-Hulk, mas estas foram apresentadas como outros personagens desde o início.) Há ainda as múltiplas versões decorrentes do distúrbio de múltipla personalidade do dr. Banner, na engenhosa leitura do roteirista Peter David.

Outro tradicional “mutante” da Marvel é o deus do trovão, Thor.  Pela mitologia da editora, a identidade de Thor sempre esteve ligada ao seu martelo mágico, Mjolnir. No melhor estilo Excalibur, aquele que segurasse a arma e tivesse valor se tornaria o deus nórdico. No princípio, foi o médico e igualmente loiro Donald Blake. Seguiram-no, não nesta ordem, o pai de família Eric Masterson, Roger Novell, e até um alienígena com cara de cavalo, Bill Raio Beta. Numa história de realidade alternativa, Jane Foster, o interesse amoroso do Thor original, virava ela mesma deusa do trovão – um precedente que inspirou a mais recente mudança do personagem: agora, Thor é Jane Foster para valer na continuidade da série. Como convém a um deus dos truques, Loki, o arqui-inimigo e meio-irmão de Thor, também muda de gênero volta e meia.

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A Marvel não está inventando a roda. Considerando que os super-heróis formam uma mitologia pós-moderna, a editora segue uma tradição de séculos. O Loki viking não tinha nenhum pudor em trocar de sexo ou se tornar uma égua para transar com um garanhão e dar a luz a Sleipnir, o cavalo que pode atravessar diferentes mundos – em se tratando de identidade de gênero, Loki era pragmático. Da Península Árabe à Mesopotâmia, os deuses viajavam repaginados. Assim, Ishtar passou de deus a deusa da fertilidade, fundindo-se a outras divindades, mudando de nome, e tornando-se também deusa da guerra, com barba e tudo. Na África Ocidental, Exu, o mensageiro das divindades iorubá e fon, podia ser representado por um par de estátuas: uma feminina equilibrando os seios; e outra masculina, segurando um falo. Apesar das narrativas em que aparece como o Viagra personificado, o orixá mostrava-se feminino em poemas (orikis) de um grupo formado exclusivamente por adoradoras em Agbole Olunloyo. Mitologias são fluidas, mesmo a de uma subsidiária da Disney.

No século XX, vários artistas brincaram com esta fluidez, levando-a a extremos. Na década de 20, Virginia Woolf publicou Orlando, uma sátira às aventuras escritas por Daniel Defoe. Seu herói descobria-se imortal e mudava ao longo dos séculos, começando como um viril nobre inglês do século XVI e terminando como uma mulher emancipada de 1928. No Brasil, Joaquim Pedro de Andrade adaptou Macunaíma – O Herói Sem Nenhum Caráter do romance de Mário de Andrade, mantendo o ponto crucial em que o personagem se banha em uma poça d’água encantada e fica branco. No filme de 1969, Andrade usa dois atores completamente diferentes (o negro mirrado Grande Otelo e o branco esguio Paulo José) nas duas fases de Macunaíma. O contraste entre os tipos físicos acaba enriquecendo a narrativa com novo subtexto. 

Na cultura pop, o anime Ranma 1/2 (1989- ) de Rumiko Takahashi, também usa a água para transformar um rapaz – desta vez, em mulher e vice-versa. Da constância do subterfúgio, arranca uma comédia de costumes que desafia as convenções de gênero, algo frequente na cultura japonesa moderna. E se Dan Aykroyd se transformasse em Melissa McCarthy bem no início do novo Caça-Fantasmas? A internet entraria em colapso?

 

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Em 1977, o cineasta Luis Buñuel foi mais radical. No filme Este Obscuro Objeto do Desejo (Cet Obscur Objet du Désir), duas atrizes (Carole Bouquet e Angela Molina) revezam-se no papel da mesma mulher, Conchita, às vezes no meio da mesma cena. O artifício nasceu de uma piada: sofrendo com o temperamento da atriz Maria Schneider, o diretor, já calibrado por umas doses de uísque, sugeriu ao produtor Serge Silberman que usassem outras duas atrizes no lugar dela; Silberman, igualmente bêbado, topou no ato. O resultado é uma confusão, que paradoxalmente liberta o espectador para se fixar no mais importante da personagem, sua essência. Tudo flui, mas o espírito fica.

Não que a Disney/Marvel esteja ligando muito para História e arte, mas essa fluidez tem sido extremamente saudável para seus lucros. O universo cinematográfico Marvel se alimentou de múltiplas variantes dos heróis dos quadrinhos. O Nick Fury interpretado por Samuel L. Jackson nos filmes não é o veterano branco da Segunda Guerra Mundial das revistas originais, mas sim a versão do universo alternativo Ultimate, em que a editora modernizou seu catálogo de personagens. Já Homem-Formiga (Ant-Man, 2015) funde diversas versões do herói para regurgitar algo diferente. Nos quadrinhos Ultimate, o roteirista Brian Michael Bendis matou Peter Parker para introduzir um novo Homem-Aranha, o latino Miles Morales, que se impôs pela qualidade de suas aventuras. 

Detratores frequentemente acusam criadores de se render ao “politicamente correto” ou à “ideologia de gênero” (ou algum outro jargão histérico do momento), esquecendo-se de que politicamente correto de empresa é dinheiro. “Tudo que já foi feito por Hollywood desde o começo dos tempos é um caça-níqueis”, explica Paul Feig. “É por isso que o Caça-Fantasmas original existiu. Não foi altruísmo. Os estúdios fazem filmes para fazer dinheiro, e cineastas tentam fazer algo que divirta o público ao mesmo tempo em que ganhe dinheiro para o estúdio.” Franquias de caçadores de fantasmas em Nova York ou personagens como Thor são produtos de empresas que querem maximizar lucros pelo máximo de tempo, o que gera dois efeitos. 

Primeiro, se há um crescimento potencial de um público-alvo fora do padrão “homem branco indignado”, as empresas correrão para adaptar seus produtos aos anseios dessa nova audiência, especialmente no que diz respeito a identidade. Muitas comoções por alteração de etnia de personagens nem sequer têm razão de ser. Quando a atriz negra Noma Dumezweni foi escolhida para viver a intrépida aprendiz de feiticeira Hermione na peça Harry Potter and the Cursed Child, a escritora J.K. Rowling chamou a atenção de enfurecidos internautas para o fato de que nunca identificara a personagem como branca. O interesse pela peça acabou se tornando maior, especialmente para pessoas com pouca oportunidade de se ver fisicamente espelhadas em seus heróis favoritos. 

Antes que o leitor ali atrás comendo Pringles argumente que “quase nenhum loiro se parece com o musculoso Thor”, reflita que o Thor continua sendo loiro mas a autoestima, especialmente de adolescentes, tem outras cores. Em 2001, Paul Jenkins, Mark Buckingham e Wayne Faucher entenderam isso ao desenhar um Homem-Aranha imaginado por um garotinho negro em Heroes Don’t Cry (Peter Parker: Spider-Man #35).

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Segundo, mudanças radicais nos personagens/produtos serão inevitáveis se se quiser continuar criando histórias interessantes durante meses ao longo de décadas prestes a se tornar séculos. Esta energização é um dos grandes problemas na atualização do Super-Homem, engessado num arquétipo e num tipo físico extremamente rígidos. Em contrapartida, muitos dos personagens aqui citados transcenderam o tipo físico para encontrar força no arquétipo. 

É o caso do agente 007. O sofisticado James Bond é um sedutor em série, implacável com os vilões e sempre à disposição com um trocadilho na ponta da língua. Os produtores podem driblar a fadiga da franquia com elementos que, ainda por cima, adicionem carga dramática à fórmula. Por isso, as sugestões de nomes como Idris Elba e Gillian Anderson para viverem o espião obtiveram tamanha atenção. Pense nas várias camadas que um Bond negro pode trazer ao complexo de inferioridade que Bond tenta compensar. Ou numa Jane Bond que se esforce em fazer as mesmas peripécias de seus antecessores num mundo ainda essencialmente masculino – coisa que Anderson já ensaiou no seriado televisivo The Fall (2013-  ). 

Hoje em dia, até as ficções escritas por fãs entregam de bandeja aos executivos do entretenimento inúmeras possibilidades de qualidade variável. Mesmo as mais duvidosas podem se tornar rentáveis, como os 50 Tons de Cinza de E.L. James (“Oh, meu Deus! Oh, meu Deus! Oh, meu Deus!”), uma releitura dos personagens da saga sobrenatural adolescente  Crepúsculo, de Stephenie Meyer.

Obviamente, mudanças só têm êxito se pertencem a uma história que ressoe com uma geração ou um grupo. O Tocha Humana negro do último filme do Quarteto Fantástico (Fantastic Four, 2015) deu chabu, menos por culpa do ator Michael B. Jordan do que por um roteiro desastroso e uma direção incoerente. As inúmeras mudanças editoriais no universo de heróis da DC Comics, com heróis rejuvenescendo e se modificando praticamente a cada 3 anos, têm revertido em cada vez menos popularidade. 

Acima de tudo, o certo é que mudanças são a tônica da vida e da ficção. Se até o Deus do Velho Testamento se tornou mais compreensivo depois que teve um filho, o resto do mundo pode seguir pelo mesmo caminho. Nada na vida é insubstituível, exceto uma boa história.

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Agradecimentos a Tiago Ramos por apresentar-me a Ranma 1/2.

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Sobre Mauricio Sellmann (17 artigos)
A metade mais problemática da Revista Salsaparrilha.

2 comentários em Metamorfoses ambulantes

  1. Excelente análise man, parabéns!

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