Os anjos maus da nossa natureza – parte 1
“Não somos inimigos, mas amigos. Embora a paixão tenha testado nossos laços, ela não deve quebrá-los. As cordas místicas da memória… vão juntar-se ao coro da União, quando outra vez forem tocadas, como de fato serão, pelos anjos bons da nossa natureza.”
(Discurso de posse do presidente dos EUA Abraham Lincoln, em 1861.)
Dimapur, província de Nagaland. A Índia enfrenta níveis alarmantes de estupro e abuso sexual infantil. Ânimos ficam ainda mais exaltados depois que um documentário sobre um famoso caso de estupro coletivo em Nova Delhi teve sua exibição proibida no país. Neste clima, uma notícia de um caso local de estupro espalha-se pelas redes sociais e pelos celulares dos habitantes de Nagaland. Cerca de 7 mil pessoas invadem uma prisão em Dimapur, arrastam para fora o suposto estuprador e espancam-no até a morte. Alguns agressores são identificados e detidos. As investigações sobre o estupro que teria sido o estopim da violência ainda não foram concluídas.
Strand, uma cidadezinha do meio-oeste dos EUA. A caminho para se casar com sua noiva de longa data, um mecânico é detido sob a suspeita de ter participado no sequestro de uma garota local. Enquanto os policiais investigam os indícios, boatos espalham-se pela cidade de que sua culpa já havia sido provada. Uma multidão de homens, mulheres e adolescentes invade a delegacia, rende os policiais e queima o prédio com o mecânico dentro. Ele era inocente.
Essas duas histórias estão separadas no espaço, mas também no tempo. A primeira é de 2015; e a segunda, de 1936. A primeira é fato real e a segunda é parte da trama de Fúria (Fury), o primeiro filme americano de Fritz Lang (Metrópolis). Título apropriado, pois a selvageria da multidão une esses dois relatos.
Em Fúria, ao contrário do incidente em Dimapur, a vítima consegue escapar por um acaso. Joe (Spencer Tracy) planeja, então, uma vingança contra os seus agressores: permanecer escondido para que os linchadores identificados possam ser julgados e condenados à forca. A genialidade do filme de Lang está em inverter os papéis para realçar a irracionalidade que guiava a multidão. À medida que o julgamento prossegue, Joe fica mais irascível, replicando o comportamento daqueles que o perseguiram. “Eles vão ter o que não me deram: uma corte justa, um julgamento justo!”, ele berra. A noiva tenta convencê-lo de que a morte deles também seria uma farsa.
Tracy arqueia os ombros, tensiona os músculos da face num esgar permanente, os olhos focalizando um único objetivo à sua frente. Parece o Sr. Hyde da adaptação de O Médico e o Monstro (Dr. Jekyll and Mr. Hyde) que ele interpretaria cinco anos mais tarde. O pacato Joe foi transformado num animal com sede de sangue. Movido por uma só paixão, como aqueles que quase o mataram. Como a turba de Dimapur. Como uma manada descontrolada.
Chama-se comportamento de manada o fenômeno por trás dessas explosões de violência. Como o nome indica, geralmente é estudado em grupos de animais, pássaros, peixes e insetos. Trata-se de uma ação conjunta de indivíduos da mesma espécie sem coordenação prévia clara. Nosso instinto de sobrevivência nos faz suscetíveis a comportamento semelhante.
Quando enfrentamos risco, tendemos a imitar os outros. Em situações-limite, as pessoas costumam perder a individualidade – sua personalidade, seus conceitos, seu código moral particular – para se perderem na multidão. A adrenalina transforma-se no impulso que costura vários seres em uma única criatura maníaca.
Toda vez que os mercados derretem na mais recente crise financeira global, o pânico da manada terá provocado o desastre. Não por outra razão, economistas estudam esse tipo de comportamento em humanos com mais frequência que pesquisadores de outras áreas. Afinal, o comprador de ações comum sabe – ou deveria saber – que deve esperar um ciclo natural para que suas ações possam render lucros. Mesmo assim, investidores de todos os tamanhos costumam agir como um enxame desesperado ao menor rumor do mercado, por mais infundado que seja, gerando euforias e pânicos, bolhas e crashes. Note que a palavra mais usada no noticiário econômico é “preocupação”. Se o mercado financeiro nada mais é que um jogo, a maioria dos investidores se comporta como aqueles jogadores de pôquer nervosos e facilmente ludibriados. A cena climática do filme Trocando as Bolas (Trading Places, 1983), de John Landis, ambientada no chão da Bolsa de Valores de Nova York, exemplifica a manada financeira à perfeição mesmo 30 anos depois. Veja:
O medo, aparentemente, sempre sobrepõe-se à ambição ou à ganância, não só no mercado financeiro, mas na vida em geral. As campanhas do norte-americano George W. Bush, em 2004, e dos brasileiros José Serra, em 2002, e Dilma Rousseff, em 2014, pautaram-se pelo temor e tremor. Em momentos de crise, essa tática é garantia de vitória.
Assim como o medo, o ódio, aquele sentimento-irmão, também define a multidão. Pesquisadores da Universidade de Beihang concluíram, após um estudo com milhões de usuários do Weibo, a versão chinesa do Twitter, que mensagens de ódio espalham-se com mais rapidez de que aquelas de alegria, tristeza ou repulsa. Quanto maior a percepção de pertencimento ao mesmo grupo social, maior o alcance dessas mensagens. Alguém poderia argumentar que essas constatações são limitadas por fatores culturais. No entanto, os resultados confirmam os da pesquisa de Jonah Berger e Katherine L. Milkman, nos EUA, publicados em 2012. Vídeos de gatinhos fofos não são páreo para notícias de bruxas sequestradoras de crianças ou ataques políticos vitriólicos.
O medo vende, mas só a raiva une.
“Até eles alcançarem a fila, pareciam inseguros, quase furtivos, mas no momento em que se tornavam parte dela, ficavam arrogantes e voláteis. Era um equívoco vê-los como inofensivos caçadores de curiosidade. Eram selvagens e amargos…”
(The Day of the Locust, de Nathanael West, 1939)
Linchamentos ocorrem desde quase sempre. Vingança e justiça foram sinônimos em grande parte da história da humanidade. No Novo Testamento, Pilatos oferece a condenação de Jesus à vontade popular, no que obtém como resposta: “Crucifique-o! Crucifique-o!” (Lucas 23:13-21). Execuções públicas serviam como forma de aplacar o desejo de retribuição do povo; e, em alguns lugares, ainda servem.
Até a Idade Média, pelo menos, linchamentos eram mesmo encorajados já que o Estado não conseguia chegar a todos os lugares. Mais tarde ainda, no período do Terror da Revolução Francesa (1793-1794), executaram-se milhares de prisioneiros políticos com a última novidade do mercado, a guilhotina. No clima de paranoia que se seguiu, os cidadãos franceses, apanhados na febre antimonarquia, apoiavam cada vez mais a violência do Estado, até para que eles próprios não fossem vistos como contrarrevolucionários. Percebiam-se inimigos em todos os lugares. A guilhotina não era o suficiente para uma massa ensandecida que, por isso, praticava seu próprio justiçamento nas ruas. A violência popular equivalia a direito político.
Os Massacres de Setembro de 1792 já prenunciavam a carnificina. Segundo fortes rumores à época, os presos seriam libertados para se juntarem a monarquistas estrangeiros numa contrarrevolução. Encorajada por radicais, uma turba invadiu as prisões de Paris e matou cerca de 2000 pessoas. Um mar raivoso – foi como Charles Dickens chamou a multidão revolucionária a clamar por vingança em Um Conto de Duas Cidades (A Tale of Two Cities, 1859). O escritor faz um dos seus personagens, o Doutor Manette, testemunhar em primeira mão a violência na prisão de La Force naquele setembro de 1792:
“A alegria louca pelos prisioneiros que foram salvos o espantou menos que a ferocidade louca contra aqueles que foram retalhados. Um prisioneiro de lá, disse ele, havia sido jogado na rua livre, mas foi trespassado por uma lança que um selvagem, ao se enganar, arremessou enquanto desmaiava.”
O mar raivoso assombra a barca da civilização há muitos séculos.
“Um linchamento a cada 3 dias”, diz o promotor interpretado por Walter Abel no julgamento dos linchadores de Fúria. O filme de Lang pode ser ficção, mas o justiçamento popular era um problema bem real nos Estados Unidos, especialmente no período entre o fim da Guerra Civil e o fim da Segunda Guerra Mundial. Algumas vezes, eram praticados por uma gangue; noutras, por famílias inteiras que, depois, reuniam-se para tirar uma foto sorridentes aos pés do cadáver. Estimativas falam em 4.700 mortes por linchamento entre 1880 e 1945. Em torno de 80% dos casos ocorreram no sul do país.
A maioria das vítimas eram negros, ou brancos “amantes de negros”. As acusações contra elas iam de crimes graves à simples compra de um carro. A vítima em Fúria é um homem branco porque ter um negro no papel principal seria garantia de fracasso de bilheteria. Apenas duas décadas antes, O Nascimento de Uma Nação (The Birth of a Nation, 1915), um dos pioneiros do cinema norte-americano, glorificara de uma só tacada a Ku Klux Klan, a visão de mundo sulista e o linchamento.
Um dos casos mais violentos, mas nem por isso extraordinário, foi o de Henry Smith, um homem com distúrbios mentais acusado de haver matado a filha do xerife de Paris, Texas, em 1893. Dez mil pessoas se reuniram na cidade para celebrar ou participar na tortura de Smith, que incluiu ferro em brasa por quase uma hora, língua e olhos arrancados. Depois disso tudo, atearam fogo nele. Entre os perpetradores, encontravam-se pais e mães de família, que iam à Igreja e geralmente cumpriam a lei. O que eles faziam ali? Aos seus olhos, justiça em nome da comunidade. Colocar negros no seu lugar constituía direito do cidadão. O linchamento era só uma das muitas formas de repressão do chamado “Jim Crow”, a segregação sistemática da população negra nos estados do sul dos EUA. Corpos balançando lentamente em galhos de árvore passaram a fazer parte da paisagem.
“Cena pastoral no romântico Sul
Os olhos arregalados e a boca escancarada
Aroma de magnólia doce e fresco
E o cheiro repentino de carne queimada”
Abel Meeropol – judeu, branco, comunista, professor colegial do Bronx, em Nova York – escreveu os versos acima, em 1937, sob seu nome artístico, Lewis Allan. Diz a lenda que tinha visto uma foto famosa na época: contra a escuridão noturna, dois corpos negros pendiam de uma árvore, cercados de homens que se comportavam como se estivessem no jóquei. Strange Fruit (“Estranha fruta pendendo dos álamos”) tornou-se um potente libelo quando Billie Holiday ouviu a canção de Meeropol e passou a interpretá-la como se tivesse sido marcada nela a ferro e fogo. Após ouvi-la, nenhuma foto é páreo para as imagens que se formam na sua cabeça (“estranha e amarga safra”).
Enquanto Fúria se tornava um sucesso de público e crítica, projetos de leis para coibir a prática do linchamento (nunca efetivados) começaram a proliferar no Congresso dos EUA. Políticos passaram a encarar o justiçamento popular como um problema bastante sério. Em 1905, o sociólogo americano James E. Cutler já escrevia em seu livro Lynch-Law: An Investigation into the History of Lynching in the United States:
“Já foi dito que o crime nacional do nosso país é o linchamento… A prática segundo a qual turbas capturam indivíduos suspeitos de um crime… e o executam sem qualquer processo legal… é encontrada em nenhum outro país com alto grau de civilização. Distúrbios e execuções por turbas também existem em outros países, mas não há tão frequente administração da chamada justiça popular que possa ser propriamente comparada com os tipos de linchamento nos Estados Unidos.”
Sim, existem num outro país: o Brasil.
Na continuação, breve história das turbas brasileiras, a neurociência das multidões, zumbis, uma robô alemã, uma estrela-do-mar e a chave da loucura coletiva numa peça de teatro.
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