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Mambo para Orson Welles e orquestra

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Para abrir seu filme policial de 1958, A Marca da Maldade (Touch of Evil), Orson Welles concebeu o plano-sequência (longa tomada sem cortes) mais copiado da história do cinema. Aos marinheiros de primeira viagem, Welles foi o menino-prodígio que, aos 26 anos, lançou o filme pelo qual todos os outros passariam a se medir, Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941). Dali em diante, podia-se contar com um tipo de assombro ou outro em cada filme do diretor – o que nos leva de volta ao referido plano-sequência de A Marca da Maldade.

Abria com uma bomba-relógio sendo acionada, um casal saindo de um bar e a bomba sendo posta no porta-malas de um conversível. A cena prosseguia com a câmera atrelada a uma grua, deslizando ou subindo pelas ruas da cidade fronteiriça de Los Robles (filmada em Venice, Califórnia), enquanto inúmeros personagens cruzavam com o carro “batizado”, inclusive o par central da trama: o detetive Vargas (Charlton Heston, mexicanizado por camadas de pancake na cara) e sua esposa gringa, Susan (Janet Leigh). Num rápido diálogo do mexicano com o policial de fronteira americano, descobrimos que Vargas era um famoso investigador da divisão de entorpecentes que planejar atravessar o Rio Grande para sua lua-de-mel. Os pombinhos cruzavam novamente com o conversível e se afastavam para um beijo. De repente, bum! Janet Leigh é um estouro. Primeiro corte do filme quase aos 4 minutos do primeiro tempo.

Acima, a versão imaginada por Welles quando a rodou numa única noite de março de 1957 – a última de várias tentativas, quase à alvorada, como se pode perceber olhando para o céu nalguns momentos. Ainda hoje, permanece impressionante, graças ao talentoso operador de câmera, John Russell, e à predileção do diretor de fotografia Russell Metty (Spartacus) por fluidas tomadas de grua. Nada de créditos ou música-tema; somente o barulho das ruas e os sons misturados de bares e rádios no caminho da câmera. Porém, todo o malabarismo visual seria inócuo se o diretor não o estivesse colocando a serviço da narrativa e da atmosfera. O estopim da trama central, todo o necessário sobre o mocinho e a mocinha, o subtexto político da ambientação na fronteira (no início dos movimentos de direitos civis nos Estados Unidos), a explosão que dá início ao conflito – está tudo ali naqueles três minutos e meio, que põem muito diretor contemporâneo incensado no chinelo. A Welles interessava avançar a trama com o máximo de economia e o mínimo de tempo. Perfeito, correto? Mas senta aí que essa história, como bom filme noir, é cheia de desvios.

O diretor punha bastante ênfase no que seria ouvido ao longo do filme. Suas instruções para a montagem e mixagem de som explicavam em detalhes quais ritmos entrariam em determinadas cenas e por quê. Crente que o filme significava a volta dele a Hollywood depois de dez anos na Europa, Welles provou que não aprendera nada nesse meio tempo. Cometeu o mesmo erro de quando fizera Soberba (The Magnificent Ambersons, 1942). Naquela época, mal completara as filmagens e já partira para o Rio de Janeiro buscando material para seu próximo filme, o nunca concluído It’s All True. Resultado: o estúdio RKO retalhou Soberba além de qualquer reparo. Corta pra 1957. Welles mal encerrou a produção de A Marca da Maldade, já escapuliu à procura de locações e financiamento para seu projeto seguinte, Dom Quixote, confiando feito Poliana na boa vontade do estúdio. Felizmente, a Universal foi menos perversa do que a RKO. Ainda assim, mudou bastante – inclusive o plano-sequência do início. Escreveu Welles ao estúdio, num longo memorando de dezembro de 1957, após ver a primeira versão do filme pronto: “Suponho que a música usada na sequência inicial no momento seja temporária.” Não era. Eis como a cena foi vista pelo grande público no lançamento de A Marca da Maldade, em 1958:

Ele odiou os letreiros encobrindo a ação: os créditos deveriam ir para o fim do filme, coisa bastante comum nos dias de hoje. Do jeito que estavam, distraíam da ação. Além disso, a nova composição de Henry Mancini encobria o som ambiente, que Welles considerava tão fundamental como as imagens na caracterização do espaço. Lendo tudo assim, tem-se a impressão de que Welles era um fanático quando se tratava de sua visão, algo como um Stanley Kubrick ou um João Gilberto, o que estava bem longa de ser verdade. Ele ater mesmo concordou com algumas das adições de diálogos em cenas rodadas posteriormente por Harry Keller, veterano de faroestes do estúdio. Entretanto, Welles era aquela ave rara que pensava a contribuição de cada peça do filme para o todo.

Ao trabalhar na restauração e edição da versão idealizada pelo diretor, cinquenta anos após o lançamento A Marca da Maldade, o lendário editor de som Walter Murch (A Conversação, Apocalypse Now, Guerra nas Estrelas) ficou impressionado com a meticulosidade de Welles em relação ao desenho de som. “O uso especial do contraste entre faixas ‘estilo mambo’ e rock’n’roll será desenvolvido posteriormente neste memorando, quando eu voltar aos detalhes da ‘batida’ e também ao uso específico da instrumentação e cor musical cena a cena, e a cada transição”, Welles dizia no início de seu memorando ao estúdio. Era um cacoete do rádio, onde o diretor fizera dramas memoráveis com sua trupe do Mercury Theatre. A mais famosa dessas obras radiofônicas foi a adaptação de A Guerra dos Mundos como se fosse um noticiário de verdade. Assim, desde cedo, Welles pensava a banda sonora como um componente vital das suas histórias. Em A Marca da Maldade, o uso de música ambiente caracterizava-se pelo realismo de rádios ligados apenas quando os personagens entravam nos carros, música que parava um pouco antes de uma banda de músicos descer a escada, etc. O equilíbrio entre som e silêncio poderia energizar ou matar uma cena. 

Não há melhor exemplo dessa visão do som do que a primeira cena entre Quinlan, o policial americano corrupto (interpretado por um Welles com enchimento da grávida de Taubaté), e a cartomante Tana (Marlene Dietrich, de peruca escura), em Los Robles. Uma valsinha evocativa toca numa pianola quando Quinlan entra na casa de Tana. Os dois trocam diálogos ácidos — haviam sido amantes no passado. As coisas ficam mais tensas quando Quinlan começa a fazer perguntas sobre a explosão ocorrida mais cedo. Por exigência do diretor, o fim da música assinalaria o início do interrogatório. Na versão lançada pelo estúdio, a música toca durante toda a cena. Ouvindo os dois áudios em sequência, percebe-se como o silêncio brusco reforça a mudança de atmosfera. A quebra ocorre em 00:57, após Tana dizer que Quinlan está um desastre.

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Quando a cena era mostrada nos cinemas, as plateias riam ao longo de todo o diálogo. Quando a Universal lançou a versão de Welles em circuito limitado 50 anos depois, as risadinhas paravam junto com a pianola. O clima pesava mais que a figura do detetive Quinlan. Por essas e outras, tende-se a concordar com o esquema de som que o diretor concebera originalmente para a cena de abertura. 

Ele só não contava com Henry Mancini.

O compositor começou a trabalhar no time de músicos da Universal Pictures em 1952. Ficaria célebre após largar o estúdio no mesmo ano em que fez A Marca da Maldade. Foi então que conheceu o cineasta Blake Edwards trabalhando para a série Peter Gunn. Na década seguinte, os dois colaborariam em dramas e comédias como Vício Maldito (Days of Wine and Roses, 1962), Bonequinha de Luxo (Breakfast at Tiffany’s, 1961) e A Pantera Cor-de-Rosa (The Pink Panther, 1963). Welles pediu a Mancini poucas contribuições para A Marca da Maldade. Quando os executivos do estúdio o chamaram para compor o tema de abertura, ele sabia o que o próprio Welles esperaria dele. Se você voltar aos dois clipes lá no início, perceberá que o tema de Mancini começa dos bongôs entreouvidos na versão de Welles, saídos de algum bar nas redondezas. Portanto, a música insere-se de forma orgânica na cena. A chave para o seu êxito é que ela não pára por aí.

Dada a oportunidade, Mancini era capaz de surpreender – como faria anos mais tarde, fornecendo música original para a a ficção científica de terror Força Sinistra (Lifeforce, 1985), o suspense Um Clarão nas Trevas  (A Shot in the Dark, 1967) ou o drama político Ver-te-ei no Inferno (The Molly Maguires, 1970). Para o tema de abertura de A Marca da Maldade, o compositor planejou um som que traduzisse a vibração e as misturas culturais numa cidade da fronteira entre os Estados Unidos e o México. Contratou músicos de jazz e música latina de fora dos quadros da orquestra do estúdio para obter a batida perfeita. A seção de metais contava com os trompetes de Pete Candoli, Conrad Gozzo, e Ray Linn, três dos melhores profissionais do jazz em atividade na época. Aqueles bongôs que abrem a composição e pontuam toda a abertura são cortesia de Jack Costanzo, o inigualável Sr. Bongô, que já trabalhara para Desi Arnaz, Nat King Cole e o rei da música latina, Perez Prado. Com esse time, o compositor partiu para sublinhar a cena em vez de apenas colocar-lhe cortinas novas.

Naquela época, a introdução com o logotipo da Universal não tinha tema fixo. Mancini aproveita para informar ao público que o que virá a seguir não vai prestar – no bom sentido.

O filme abre com o tique-taque da bomba se transformando no tum-tum-tum disciplinado do bongô, graças à gargalhada enfeitiçante de uma mulher. Dali em diante, o instrumento funcionará como lembrete de que uma explosão estará prestes a ocorrer. Ao mesmo tempo, ele é um metrônomo a regular o andamento da própria cena.

O casal entra no carro e o perigo se torna maior. Mancini solta a sua sessão de metais na cara do espectador – aquela mesma que assombrava o logotipo da Universal.

Do terreno baldio, a câmera voa para o cruzamento de uma rua movimentada, sempre acompanhando o carro. As notas musicais ameaçam ganhar um tom menos grave, estimuladas pelas imagens de um centro urbano fervilhante. Perceba como o apito do guarda de trânsito na trilha incidental serve como um sinal para apimentar as coisas.

O carro pára em novo cruzamento. A câmera desce sobre um belo casal atravessando a rua: Vargas e Susan. A música torna-se voluptuosa para os introduzir.

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Numa coreografia, mais e mais elementos confluem para a cena: pessoas, carros, até mesmo animais. A cidade se torna uma festa. À esta altura, Mancini já colocou toda a orquestra para trabalhar, levando a música a um clímax animado. Todos os motivos – a bomba, o tema ameaçador, a música do casal Vargas – entram em ação juntos. Até o bongô se permite um floreio que tanto pode ser euforia quanto urgência.

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Todos os instrumentos recuam para dar destaque ao sax do tema dos Vargas enquanto eles conversam com o policial da fronteira. 

Os dois se afastam e a loira no carro com o explosivo comenta com o guarda que não pára de ouvir um tique-taque na cabeça. O bongô ganha vida apenas por tempo suficiente para um floreio maroto – alguns até diriam que um toque de humor negro.

A câmera desliza novamente para os Vargas, que se se afastaram para o canto em um momento de intimidade. O beijo romântico – entre um mexicano de pele escura e uma loira americana, numa época em que o movimento pelos direitos civis nos EUA apenas começava – “detona” a bomba no carro já fora da cena. Assim como o idílio do casal interracial, o tema musical dos Vargas e o bendito bongô são interrompidos pelo estampido brusco e violento.

 

Mancini entendeu que não se tratava apenas de uma sequência de tensão, e incorporou elementos que realçaram cada mudança de compasso, ou foco, nas imagens de Welles. Ao fazer desta música um mambo com elementos de composição clássica, emulou as nuances que o cineasta quis demonstrar no som ambiente. Entretanto, fez isto de maneira muito mais, digamos, orquestrada, assim como o plano-sequência de Welles. Formaram um belo casal.

Mesmo decepcionado com a montagem do estúdio e os créditos sobre a imagem, o diretor jamais reclamou do tema de Mancini. Em entrevista a Peter Bogdanovich, muito tempo depois, chegou a elogiar o trabalho do compositor para ele em A Marca da Maldade

Infelizmente, não fora a tão sonhada volta em grande estilo de Welles a Hollywood. Mesmo com os cortes e a remixagem, uma senhora saiu da sessão-teste atacando um executivo da Universal a bolsadas por exibir tamanha depravação – uma cena chegava a sugerir uma orgia, drogas, homossexualismo e estupro, tudo ao mesmo tempo agora. Os russos chamaram o policial com forte crítica social de Welles de típico filme decadente americano. Dos franceses, o diretor ouviu que era um fascista. Ao menos, ele pôde se orgulhar de ter atraído o desprezo de todos os vértices do espectro político . E todos passaram, mas A Marca da Maldade ficou. Graças à contribuição indesejada de Mancini, seu plano-sequência de abertura tornou-se aquele exemplo raríssimo de casamento forçado que deu certo. Um estouro.

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E música de Henry Mancini.


A Marca da Maldade está disponível em DVD no Brasil, mas a melhor edição do filme é o Blu-ray especial de aniversário de 50 anos com as 3 versões (teste, cinema, e restaurada de acordo com as instruções de Welles).

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Sobre Mauricio Sellmann (17 artigos)
A metade mais problemática da Revista Salsaparrilha.

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