Master chef: o cinema misturado de Joon-ho Bong
Há um clube fechado de diretores que aparentemente conseguem fazer qualquer coisa com a mesma maestria. Howard Hawks fez de faroestes como Onde Começa o Inferno (Rio Bravo, 1959) a comédias musicais como Os Homens Preferem as Louras (Gentlemen Prefer Blondes, 1953). Akira Kurosawa dirigiu desde o intimista Ikiru (1952) até o épico Os Sete Samurais (Shichinin no samurai, 1954). Lars von Trier é outro que vai da fantasia apocalíptica, Melancolia (Melancholia, 2011), até o musical, como Dançando no Escuro (Dancer in the Dark, 2000). O sul-coreano Joon-ho Bong está pleiteando a sua carteirinha para esse clube com o seu filme mais recente, O Expresso do Amanhã (Snowpiercer, 2013), que finalmente estreou no Brasil no dia 27 de agosto. Com apenas 5 longas-metragens, um segmento do filme-coletânea Tokyo! (2008), e outros tantos curtas, Bong já saltou por vários gêneros ou fundiu-os com enorme destreza. O que liga todas as suas obras é o olhar inteligente e extremamente crítico sobre a sociedade moderna. A seguir, um passeio por alguns desses filmes para mostrar a versatilidade do diretor.
O primeiro longa de Bong centra-se numa trama que aparentemente não renderia mais que um curta-metragem: morador de um prédio de apartamentos se farta de ouvir latidos de cão do vizinho e resolve se livrar do bicho. No entanto, os personagens principais ganham uma história pessoal tão rica que expande as possibilidades deste humor negro com montagem vibrante de Eun Su Lee (A Empregada).
Yun-ju (Lee Sung-Jae), além dos problemas com cachorros, aspira conseguir um emprego como professor assistente numa universidade de Seul. Para isso, precisa de 10 mil won como suborno para o chefe do departamento, um mau costume no país. Já Hyeon-nam (Doona Bae) é a ingênua funcionária pública local que se envolve no resgate dos muitos cães desaparecidos durante o filme. Entre esses dois, orbita uma constelação de personagens secundários extremamente divertidos: a amiga boa de briga de Hyeon-nam, a esposa grávida e dominadora de Yun-ju, o zelador cheio de causos para contar e o mendigo maluco.
No meio de piadas pastelão ou de humor cruel, Bong faz uma crítica ao meio acadêmico e ao modo de vida numa sociedade moderna, temas reminiscentes de uma série de curtas que fez em 1994, Incoerência (Jilimyeollyeol). Em Cão que Ladra, os mais fracos acabam injustiçados — é a vida — mas, ironicamente, isso lhes proporciona um final feliz. Em compensação, o personagem que conquista tudo o que desejou acaba prisioneiro do seu sucesso, como o diretor demonstra numa simples mas bastante eficaz tomada.
Preste atenção: ao modo como as imagens pegam emprestado elementos dos mangás. Bong abusa de linhas retas em perspectiva não só para para dar realce à movimentação nas cenas, mas também para emoldurar a composição visual — um exercício em profundidade que acabará sendo uma espécie de assinatura dos seus filmes. E se você só conhece Doona Bae das obras dos irmãos Wachowski (A Viagem, O Destino de Júpiter, Sense 8), está mais do que na hora de ser apresentado ao seu subestimado talento para comédia.
Diálogo para lembrar: “Mesmo a cabeça de alguém com doutorado não é páreo para um trem.” (Acredite, fica melhor no contexto.)
O título em português, seguindo aquela nossa tradição, soa um pouco esquisito: as memórias são de assassinato, e, ainda por cima, pelos olhos dos investigadores.
Estamos em 1986, penúltimo ano da ditadura do General Doo-hwan Chun (1979-1987). A trama se inspira no primeiro caso de assassinatos em série registrado na Coreia do Sul, ocorrido entre 1986 e 1991. Na província de Gyeonggi, arredores de Seul, policiais locais investigam a morte de uma jovem. Seu corpo foi encontrado no campo, amordaçado e estrangulado com suas próprias roupas íntimas. O detetive Doo-man Park (Kang-ho Song, de Lady Vingança) e seu parceiro começam a investigar, e logo recebem o auxílio de um detetive da capital, Tae-Yoon Seo (Sang-Kyung Kim). As vítimas proliferam, e os suspeitos também.
A premissa não foge do feijão-com-arroz de histórias sobre serial killers. No entanto, Bong pega a ideia para executar nada menos que o extraordinário: misturar o gênero policial à comédia, mantendo uma certa leveza que jamais se torna ofensiva. Muito pelo contrário, ela retroalimenta o drama, mostrando o absurdo das torturas para se obter confissões e a paranoia de regimes repressivos, onde tudo e todos são suspeitos. A crítica social nunca é forçada, fundindo-se com naturalidade à trama. Por exemplo, a objetificação das mulheres – não só pelo assassino – fica clara por meio de pequenas vinhetas ou discretos gestos. Numa cena tocante, o detetive Seo vê uma das vítimas rodeada de jornalistas e policiais, todos homens, na cena do crime. Ele se ajoelha e ajeita a roupa da morta para cobrir-lhe o corpo, restaurando-lhe a dignidade. O próprio diretor jamais fetichiza os crimes, e muitas vezes limita-se à sugestão do que possa ter acontecido. Assim, aos poucos e sem que o espectador perceba, Bong faz a travessia completa do humor ao horror.
Tratando de uma situação particular, Memórias de um Assassino acaba sendo um espelho do momento histórico no qual se passa. O sobrenome do provável assassino e de um dos detetives, Park, é uma espécie de Silva sul-coreano de tão comum, mas também é o nome do primeiro ditador do país após a cisão com o norte – o general Chung-hee Park (1960-1979) –, sugerindo que a lei e o crime nessas circunstâncias são duas faces da mesma violência.
Bong disse que uma de suas inspirações ao escrever o roteiro foi Do Inferno (From Hell, 1999), de Alan Moore e Eddie Campbell, que misturava os crimes de Jack, o Estripador a uma história secreta da Inglaterra vitoriana. É tentador imaginar como seria a adaptação desta graphic novel se estivesse nas mãos do diretor sul-coreano.
Preste atenção: ao roteiro de Bong e Sung-bo Shim, baseado na peça Venha Me Ver, de Kwang-rim Kim. Eles imprimiram ao filme uma estrutura rigorosa, com estudada simetria, que supera os pequenos furos narrativos (algumas coincidências e a explicação para que uma das vítimas tenha conseguido escapar). O filme começa e termina com duas cenas perfeitamente simétricas, sugerindo um loop de trevas sem fim.
Diálogo para lembrar: “De acordo com os vizinhos, ele cuida bem da esposa doente, vai à igreja toda semana e é honesto. Todo tarado é assim.”
Filmes de monstro, assim como melodramas, são um subgênero polarizador, daqueles que ou se ama ou se odeia. Filmes de monstro misturados com outro gênero, então, correm mais riscos de não agradar a ninguém ou simplesmente desandar. Os bem-sucedidos contam-se nos dedos, como Monstros (Monsters, 2010), um misto de ficção científica, road movie e crítica social do diretor Gareth Edwards. O outro é este recordista de bilheteria na Coreia do Sul, que Bong realizou com um orçamento bem maior que o de suas obras anteriores. Em 2007, o filme esteve em muita lista de melhores do ano de críticos ocidentais.
O Hospedeiro começa com uma variação de um episódio real: em 2000, num laboratório de Seul, um cientista americano (Scott Wilson, de The Walking Dead) manda o seu subordinado despejar pelo ralo litros e litros de substâncias altamente tóxicas só porque os frascos estavam cobertos de poeira – provavelmente um ex-marido de Joan Crawford. Aquela sopa tóxica vai parar no rio Han, que banha a cidade. Seis anos depois, de lá surge um bicho metade peixe, metade sapo, todo deformidade (design de Hee-chul Jang), algo do tipo que você provavelmente encontrará na Lagoa Rodrigo de Freitas dia desses. Gang-du (Kang-ho Song, novamente), que trabalha num trailer de comida à margem do rio com seu pai, vê impotente sua filha, Hyun-seo (Ah-sung Go), ser arrastada pela criatura. As autoridades acreditam que todos os que tiveram contato com o monstro contraíram um virus perigoso. Em meio à quarentena que se segue, Gang-du e o resto da família resolvem procurar Hyun-seo, enfrentando até o governo, que trata o problema com resultados desastrosos.
Desse ponto de partida, Bong subverte as convenções do gênero. O monstro aparece inteiro, à luz do dia nem bem se passaram 10 minutos de filme, e protagoniza uma sequência longa e eletrizante. Depois, ele ainda aparecerá bastante, sem disfarces, em elaboradas cenas de suspense. O momento em que se realiza o memorial para os mortos começa triste para, sem aviso, tornar-se comédia pastelão. O governo e os militares chegam quase ao mesmo nível de ridículo dos burocratas de Brazil – O Filme (Brazil, 1985). Assim, os heróis – a picaresca família Park, pobres, atrapalhados e, no caso de Gang-du, meio devagar das ideias – têm que enfrentar não um monstro, mas dois. Há alusões nada lisonjeiras aos EUA (ao Agente Laranja, por exemplo), mas as autoridades sul-coreanas e os estudantes ativistas também não escapam da gozação. O Hospedeiro é uma sátira com coração e dentes.
Preste atenção: ao elenco, que reúne um grande número de atores dos filmes anteriores de Bong. Às vezes, eles aparecem em pequenas pontas engraçadíssimas, como Roe-ha Kim, um dos detetives de Memórias de Um Assassino, como um burocrata que faz de tudo para não ter que dar aos suspeitos de contaminação a notícia de que serão internados. As crianças, que, via de regra num filme desses, são insuportáveis (Parque dos Dinossauros, O Dia em que a Terra Parou, Guerra dos Mundos), aqui se mostram espertas e cativantes. Todos têm uma motivação para agirem como agem. E os atores, por menor que seja seu papel, respondem à altura. Scott Wilson rouba a cena com um sorriso cínico nos poucos minutos que tem. O Hospedeiro, porém, pertence ao astro Kang-ho Song, que aqui interpreta alguém completamente diferente do detetive Park de Memórias de Um Assassino. Como Gang-du, ele vai do engraçado ao comovente de tal forma que faz tudo parecer muito simples.
Diálogo para lembrar: “Sabem, eu passo a maior parte do dia no trailer de comida com ele. Então, quando eu o ouço peidar, posso dizer na hora se ele está em boas ou más condições.”
Por que o título do filme em português é Mother em vez de Mãe é mais um mystery que ficará para a history da tradução no Brazil.
Na primeira cena deste misto de suspense e comédia, uma mulher de meia-idade caminha por um campo dourado na direção da câmera. Antes que o espectador suponha que esta vai ser mais uma cena contemplativa de um filme de arte asiático, ela começa a dançar um bolero. Esta é só uma das maneiras pelas quais Bong e seu co-roteirista, Eun-kyo Park, vão puxar o tapete do público em Mother. A peculiar dançarina é a personagem-título (Hye-ja Kim), vendedora de ervas medicinais (“Elas vêm da China mas são boas”, argumenta com uma cliente) e acupunturista sem licença nas horas vagas. Mesmo quando está trabalhando, ela se dedica também a cuidar do filho, Do-joon (Bin Won, de O Homem de Lugar Nenhum), um rapaz com deficiência intelectual. Uma noite, ele vai beber num bar local. No dia seguinte, é preso pelo assassinato de uma jovem da área após encontrarem uma prova irrefutável na cena do crime. Para a polícia, trata-se de crime resolvido. Para a mãe, é o começo de uma investigação por conta própria.
Desta vez, Bong enche a tela de close-ups dos personagens, dando um tom intimista à narrativa. Não raro, os atores falam diretamente para a câmera. Nada melhor para ler a verdade do que um rosto, correto? Mother se dedica a testar essa afirmativa. Por coincidência, o filme saiu na mesma época em que vários outros onde os limites da verdade no cinema são colocados em xeque (A Ilha do Medo, Saia pela Loja de Souvenirs, Cisne Negro, A Origem). A resolução surpreendente de Mother depende da revisão de uma cena lá do terço inicial do filme. Alguns espectadores acusarão o diretor de trapaça; outros vão passar horas ou dias remoendo as versões da cena; e outros ainda vão simplesmente reagir à tragédia que ela enseja. O que só vem provar que Bong é um senhor manipulador.
Não é à toa que o diretor incorpora à narrativa truques de suspense à la Alfred Hitchcock: o silêncio tenso, a montagem sádica, o tema do homem errado. Uma sequência da metade de Mother chega a ser uma homenagem à cena final de Os Pássaros (The Birds, 1963). Bong também usa floreios próprios. O riso serve para redimensionar a narrativa, mas ele nunca perde de vista o drama doloroso que está por trás de tudo. Por isso, em pelo menos dois momentos separados, mãe e filho aparecem sozinhos e isolados num canto da tela, cercados por um imenso espaço vazio a indicar a situação de desamparo em que se encontram.
Preste atenção: à atuação de Hye-ja Kim, uma estrela de telenovelas da Coreia do Sul, para quem o diretor escreveu especialmente o papel. Ela dá à sua mãe-coragem mais nuances do que se poderia esperar num filme do gênero. O seu amor pelo filho transita do carinho incondicional ao desespero com uma ligeira mudança no olhar ou um leve tremor na voz. Ao contrário do que fez nos filmes anteriores, Bong optou por concentrar o filme numa única personagem – nossas descobertas são (quase) sempre as descobertas da mãe. Kim está presente na maioria das cenas, dominando o filme sempre que aparece.
Diálogo para lembrar: “Você deve comer bem depois que volta de uma delegacia.”
Em 2014, numa tentativa de reverter os efeitos do aquecimento global, a humanidade acaba provocando uma nova Era do Gelo. Os poucos sobreviventes viajam em um trem de alta tecnologia, o Snowpiercer, que vai do nada ao lugar nenhum, uma espécie de Arca de Noé dos infernos. Os vagões estão rigidamente estratificados: a gente diferenciada vive uma vida de luxo lá na frente e a ralé pena nos vagões-favela do fundo, sob forte controle policial. Em 2031, Curtis Everett (Chris Evans), um dos oprimidos, lidera uma rebelião para chegar até o primeiro vagão, onde Wilford (Ed Harris), guarda o motor do trem.
Trata-se de uma produção verdadeiramente internacional: do elenco à equipe técnica, filmada na República Checa e na Áustria, falada na maior parte em inglês, produzida pelo sul-coreano Chan-wook Park (o diretor de Oldboy e Stoker), e baseada num trio de graphic novels francesas, Le Transperceneige, escritas por Jacques Lob e Benjamin Legrand, e ilustradas por Jean-Marc Rochette (Legrand e Rochette fazem uma ponta como habitantes do fundo do trem). Bong havia lido as histórias em quadrinhos enquanto trabalhava em O Hospedeiro. Dada a dimensão do projeto, levou mais de sete anos para tirá-lo do papel.
Com o co-roteirista Kelly Masterson (Antes que o Diabo Saiba que Você Está Morto), ele pegou elementos das três HQs para construir o seu próprio enredo. À distopia futurista, somou o seu característico humor, especialmente por meio dos personagens Mason (Tilda Swinton), ministra da ordem, e Namkoong Minsu (novamente, o versátil Song), um engenheiro de segurança viciado na droga sintética do trem, o kronole. A alegoria social também sobe de tom. As alusões de esquerda – o engenheiro é chamado pelo apelido Nam (como em Vietnã), Mason tem mais que uma passageira semelhança em visual e palavras com a ex-primeira ministra inglesa Margaret Thatcher, uma referência ao homem que jogou um sapato em George W. Bush, os vagões dos pobres estão sempre à esquerda do olhar do espectador e o dono do trem é um magnata dos transportes chamado Wilford – fariam Olavo de Carvalho ter uma crise de constipação. À medida que avança, porém, a trama transcende os esquemas iniciais para se tornar mais incisiva. Os personagens são mais complexos do que aparentam. Pela sinopse, dá para imaginar aonde o filme pretende ir, porém os últimos 25 minutos são uma caixinha de surpresas muito bem pensadas. Para não estragar nada, basta dizer que o tema principal de O Expresso do Amanhã é sobrevivência da espécie.
Caso você consiga desgrudar os olhos da dentadura de Tilda Swinton, preste atenção: ao desenho de produção de Ondrej Nekvasil (O Ilusionista), capaz de arrancar horror ou admiração a cada vagão que avançamos com os personagens – há mesmo um vagão-aquário. Seu trabalho intensifica o tom alegórico que Bong imprime à narrativa, com traços dos filmes de Terry Gilliam (Brazil – O Filme, Os Doze Macacos, Bandidos do Tempo). Gilliam, vale dizer, é o nome do personagem de John Hurt, o mentor de Curtis no trem.
Diálogo para lembrar: “Saibam seu lugar. Mantenham-se no seu lugar. Sejam um sapato.”
Vendo a obra de Bong, é impossível não pensar numa frase infame de Mason, digo, Thatcher, quando aplicou a reforma de austeridade na Grã-Bretanha da década de 1980. “Não há alternativa”, disse ela. O diretor sul-coreano parece discordar. Se o trem de O Expresso do Amanhã é uma metáfora para a narrativa cinematográfica e as fórmulas de filmes de gênero, movendo-se em linha reta do fundo para a frente, do começo ao fim, Bong costuma sugerir um alçapão ou uma porta lateral – sua marca registrada. Na cozinha dele, há sempre um tempero peculiar.
Tente o YouTube para ver Memórias de um Assassino, O Hospedeiro e Mother online. Todos esses filmes foram lançados em vídeo no Brasil, então também podem estar disponíveis nas locadoras.
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