Baratinho e de mau gosto
Peças escabrosas, crimes mais chocantes ainda, possessão, ressurreição, seres imortais e sessões espíritas convivem com a fina flor da alta e baixa sociedade londrina em Penny Dreadful (2014- ), a série de TV do canal norte-americano Showtime, em exibição no Brasil pela HBO. Nela, Victor Frankenstein (Harry Treadaway) e outros personagens misteriosos liderados pela intrépida Vanessa Ives (Eva Green) são assolados por criaturas das trevas no fin-de-siécle vitoriano.
O criador e produtor John Logan diz ter-se inspirado nos escritores e poetas românticos do início do século XIX, como Mary Shelley (Frankenstein, ou O Prometeu Moderno, 1818) para construir alguns dos seus personagens. Entretanto, muitos deles vêm do final do mesmo século, em sintonia com a era vitoriana de maravilhas tecnológicas e grandes contrastes urbanos. Bram Stoker lançou Drácula em 1897. O Retrato de Dorian Gray foi publicado em 1890. Buffalo Bill, o caubói showman que está no DNA de Ethan Chandler (Josh Hartnett), começou seus espetáculos do Velho Oeste em 1883. Jack, O Estripador aterrorizou as ruas de Londres em 1888. Do mesmo período também vem o gosto pelo espiritismo. Já os famosos aventureiros exploradores, como David Livingstone, uma das inspirações para Sir Malcolm (Timothy Dalton), datam do meio do século. Mas que importa se Logan mistura ressuscitadores e luz elétrica sem dó nem piedade? O importante é manter o espectador na ponta da cadeira. Nisso, ele aprendeu a lição dos penny dreadfuls do meio do século XIX.
Antes de continuarmos, porém, deixem-me colocar uma musiquinha para dar o clima…
Os penny dreadfuls (algo como “terríveis baratos” na tradução) ganharam esse nome por volta da década de 1860. Porém, já existiam, pelo menos, desde 1830 com o nome mais explícito de penny bloods, pois das histórias que preenchiam suas páginas só faltava jorrar sangue. Tratava-se de livretos semanais de aventuras de piratas e bandoleiros, ou de adultérios escandalosos na alta sociedade. Lá pelo meio do século XIX, os súditos da rainha Vitória inventaram a obsessão por crimes célebres. Daí para as narrativas desses crimes se tornarem populares também nas páginas foi só um pulo. Eles dividiam as atenções com as histórias sobrenaturais emprestadas do estilo gótico – coisas como Varney, o Vampiro; ou Banquete de Sangue (1845-47), ou Gerald; ou O Mundo, a Carne e o Diabo (1891). Coisa finíssima. Assim como a literatura de cordel brasileira, os penny dreadfuls foram os herdeiros dos chapbooks do século anterior e das baladas cavalheirescas medievais. A diferença é que os penny dreadfuls adicionariam mais violência à formula.
Esses livretos custavam um centavo (penny, palavra também usada como sinônimo de “moeda”) ou menos cada. Contavam histórias em episódios que poderiam se prolongar por anos. O mais longo penny dreadful de que se tem noticia é The Mysteries of London: Lights and Shadows of the London Life, que começou a ser publicado em 1844 e continuou por 624 semanas (12 anos). Cada edição tinha de oito a 16 páginas, geralmente com uma ilustração sugestiva de metade de página logo no início e texto corrido em duas colunas até o fim. As letras miúdas se espremiam até o final da última página mesmo que a última frase terminasse…
…no meio. Era essa a intenção: o leitor devia ficar apreensivo para comprar o episódio seguinte na outra semana. Como estratégia de vendas, isso era mais radical que os folhetins, as histórias em série publicadas em suplementos de jornais na França a partir da primeira metade do século XIX. Não por acaso, a palavra feuilleton é usada hoje pelos franceses – e pelos brasileiros na tradução portuguesa – para se referir às telenovelas. Pelo menos, os folhetins tinham a decência de concluir a frase no fim de cada capítulo! Por enquanto, nenhum episódio de Penny Dreadful terminou com um diálogo ao meio.

Duas histórias de sucesso: a fantasmagórica The Flying Dutchman e a melodramática The Mysteries of London.
A grande explosão dos penny dreadfuls foi consequência do aumento do grau de escolaridade, principalmente da população de Londres, que inchava a olhos vistos: de menos de 5 milhões de habitantes em 1810 a 10 milhões já em 1860, com muitos vivendo em favelões deploráveis. A Grã-Bretanha fazia a transição de nação agrícola para industrial, com todo o êxodo para as grandes cidades que isto acarretava. Uma multidão semi-letrada ansiava por entretenimento, principalmente histórias que as tirassem do torpor ou refletissem os detalhes sórdidos da realidade em que viviam. Ao mesmo tempo, os métodos de impressão passaram a ficar mais baratos, até que, com o fim do imposto sobre papel em 1861, houve um boom editorial. Considerando-se a concorrência acirrada, um único episódio que vendesse mil cópias já se qualificava como grande sucesso.
Um centavo custava cada livreto e um centavo rendia cada linha escrita a seus prolíficos autores. Com o tempo, eles passaram a desenvolver truques para que os tipógrafos tivessem que assentar suas frases em duas linhas em vez de uma – uma profusão de diálogos ajudava bastante. Cada escritor podia estar trabalhando ao mesmo tempo em 10 histórias diferentes. Às favas com a qualidade literária! As regras básicas para se criar um penny dreadful consistiam em frases curtas e diretas, e enredos sempre sensacionalistas.
Havia romancistas com aspirações mais sérias que faziam bico ou ficavam mesmo ricos como autores de penny dreadfuls. Foi o caso de Mary Elizabeth Braddon, ex-atriz e companheira de um editor, John Maxwell. Enquanto escrevia Lady Audley’s Secret, Braddon se desdobrava para acabar The Black Band: or the Mysteries of Midnight (1861) sob pseudônimo. Assim, ao mesmo tempo em que Robert Audley tentava desmascarar Lucy Graham na revista Sixpenny Magazine (Lady Audley’s Secret), uma assassina comandava uma sociedade internacional de criminosos e um gângster austríaco corria contra o tempo antes que um veneno terminasse de derreter seu cérebro em capítulos de meio centavo cada (The Black Band).
(Sugestão para John Logan: colocar em Penny Dreadful um homem correndo contra o tempo antes que o cérebro vire geleia.)
É de Braddon uma conhecida frase sobre os penny dreadfuls e seus leitores: “A quantidade de crime, traição, assassinato e envenenamento gradual, e infâmia em geral exigida pelos leitores das revistas de meio centavo é algo terrível”. Pode-se arriscar que o trocadilho foi intencional: os penny dreadfuls depois seriam conhecidos também como penny terribles ou penny awfuls. Certo é que Braddon, assim como Wilkie Collins com A Mulher de Branco (The Woman in White, 1859), ajudaram a deixar os enredos escandalosos dos livretos baratos mais realistas na medida do possível, dando-lhes uma pátina mais sofisticada.
Logan deve muito a estética de sua série de TV a autores como Braddon e Collins. A produção requintada é filmada em estúdios na Irlanda, com figurinos da vencedora do Oscar Gabriella Pescucci (A Era da Inocência), música de Abel Korzeniowski (Direito de Amar) e desenho de produção de Jonathan McKinstry (Os Bórgias, Band of Brothers). Seus roteiros também têm diálogos inspirados e citações literárias a poetas como John Clare (1793-1864). O ar sóbrio contrasta com os momentos violentos, como a primeira aparição da criatura de Frankenstein (Rory Kinnear) ou os crimes macabros que adicionam condimento vermelho à narrativa. Tudo cheira a bom gosto, mesmo que seja a recriação de uma peça de teatro com bastante sangue artificial. Se as telenovelas, Odair José e até Adam Sandler já alcançaram a respeitabilidade, por que não os penny dreadfuls?
Não que Penny Dreadful não tenha um pé na lama. Outro aspecto que a série divide com os ancestrais impressos é a reciclagem de material. Logan, como se sabe, não foi o primeiro a reunir com sucesso personagens fictícios da era vitoriana em um único lugar. A honra cabe a Alan Moore e Kevin O’Neill com As Aventuras da Liga Extraordinária (The League of Extraordinary Gentleman), uma série de graphic novels publicada desde 1999. Se Moore mantém-se mais fiel às biografias literárias de seus personagens e imagina o que teria acontecido depois das histórias originais, Logan manipula os conceitos básicos de cada um ao sabor da trama da série. O caçador de vampiros Van Helsing (David Warner), por exemplo, aparece em dado momento, mas não onde e como se esperaria. Dorian Gray (Reeve Carney) parece não ter amigos como o Lord Henry do romance, e assim por diante. Penny Dreadful, como bom penny dreadful que é, joga na sua cara qualquer baixaria sobrenatural – bruxas em banheiras de sangue, demônios com corpo de mulher escultural, rituais de exorcismo –, mesmo que isso signifique um distanciamento das origens de seus anti-heróis. Tudo o que interessa é prender a sua atenção até o…
Penny Dreadful vai ao ar no Brasil aos sábados na HBO. Os episódios também estão disponíveis pelo site/aplicativo HBO Go (para assinantes HBO). Você pode folhear algumas páginas de penny dreadfuls no acervo digitalizado da British Library.
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Já tinha começado a assistir a série antes de ler o texto e já tinha lido algumas coisas a respeito dos penny dreadfuls ao procurar sobre algumas “referências pop” do programa. Por enquanto estou achando boa, mas ainda não me conquistou por completo. Vamos ver até o final da 1ª temporada se irei me empolgar em assistir a 2ª.
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