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Liberdade, 15 anos depois

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Por Tiago Ramos

Era uma vez um rapaz que levava uma vida sem propósito em uma grande metrópole. Em um dia como qualquer outro, ele é resgatado de sua rotina vazia por um estiloso careca vestido com roupas de couro e seu pequeno grupo de revolucionários. Logo, o nosso herói descobrirá que o mundo como ele o conhece é, na verdade, uma ilusão, palco de uma guerra secreta entre forças que buscam controlar todos os seres humanos e aqueles que visam detê-las. Como se tamanha revelação não bastasse para desconcertar qualquer um, o rapaz ainda precisa aceitar o seu destino, até então desconhecido para ele: desempenhar um papel chave na condução da humanidade à sua liberdade definitiva.

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“Lembra de mim?” Infelizmente, Sr. Anderson…

Se a sinopse acima o fez lembrar de um filme do final dos anos noventa estrelado por Keanu Reeves, não podemos culpá-lo. Enquanto Matrix (The Matrix, 1999) confundia e fascinava espectadores em igual medida, um conflito parecido – porém muito mais interessante – desenrolava-se nas páginas da HQ Os Invisíveis (The Invisibles). Publicada nos Estados Unidos entre setembro de 1994 e junho de 2000 pela linha Vertigo da DC Comics, as 59 edições da série compõem, juntas, uma experiência única em qualquer mídia e gênero, com força suficiente para impactar a vida pessoal de seus leitores. No aniversário de quinze anos de seu último número, revisitamos o título e seus principais temas, percebendo como estes permanecem relevantes mesmo num cenário cultural sensivelmente diferente.

De modo a tornar este artigo o mais acessível possível, não entraremos em grandes detalhes sobre a trama da HQ. Somando aproximadamente 1.200 páginas, a série possui dezenas de personagens relevantes, desenvolve-se no passado, presente e futuro (às vezes simultaneamente) e trabalha um sem-número de idéias e teorias em seus quase 60 capítulos. Assim, não nos parece razoável lidar com detalhes da história ao mesmo tempo em que debatemos seus temas. Ademais, levando em conta que a Panini Comics começou a publicar o título no Brasil apenas a partir de maio do ano passado (o quarto encadernado — de um total de sete — foi lançado em fevereiro último), preservaremos as surpresas do enredo para aqueles que estão descobrindo a série agora.

Invisíveis a olhos vistos

Antes de mais nada, algum contexto: a HQ, criada e roteirizada pelo escocês Grant Morrison (Patrulha do DestinoLJANew X-Men) divide-se em três volumes, cada um possuindo tom e cenários distintos. No volume inicial, composto pelas primeiras 25 edições e ambientado na Inglaterra, somos apresentados aos Invisíveis do título, uma rede secreta de anarquistas tipicamente dividida em células de cinco componentes. Do outro lado do ringue, encontram-se os Arcontes e a Igreja Exterior, instituição extra-dimensional que visa escravizar a humanidade. Morrison enfoca principalmente a equipe liderada por King Mob, avatar do autor, e seu conflito contra os invasores, representados pelo aristocrata britânico Sir Miles.

Da esquerda para a direita: Jack Frost, Lord Fanny, Boy (de pé), Ragged Robin e King Mob (sentados). Arte de Brian Bolland.

Da esquerda para a direita: Jack Frost, Lord Fanny, Boy (de pé), Ragged Robin e King Mob (sentados). Arte de Brian Bolland.

Muito do primeiro volume é dedicado às origens dos membros da célula encabeçada por Mob: Jack Frost, o rapaz sobre quem falávamos no início e provável reencarnação de Buda (Down And Out In Heaven And Hell, #2 a 4; London, #16; Liverpool, #21); Lord Fanny, travesti brasileira especializada em rituais shamânicos (Sheman, #13 a 15); e Boy, ex-policial do Harlem e mestra em artes marciais (How I Became Invisible, #20). O próprio King Mob, estrategista sagaz e assassino expert em armas de fogo, tem sua história contada em Entropy In The U.K. (#17 a 19), enquanto o último membro do grupo, a viajante do tempo com poderes psíquicos Ragged Robin, tem seu passado (ou seria futuro?) revelado apenas nas edições #5 a 7 do Volume 2.

Um olhar atento sobre a história dos protagonistas faz emergir um tema comum: em todos os casos, estamos diante de pessoas que sofreram profundos traumas em algum momento crucial de suas vidas, optando por reinventar-se ao invés de serem definidas por suas tragédias. No curso de toda a série, Morrison reiteradamente argumenta que o indivíduo vitimiza a si próprio, como uma escolha, e não como uma consequência inevitável de eventos que chacoalham (ou até mesmo desfazem) suas percepções de segurança e estabilidade.

Em nenhum outro ponto do título esta perspectiva é melhor ilustrada do que em Best Man Fall (#10, Volume 1). Nesta edição, acompanhamos a história de Bobby Murray, segurança contratado pelos adversários dos Invisíveis, desde sua infância até sua morte nas mãos de King Mob no primeiro número da HQ. Visitamos, via flashbacks, todos os momentos que definiram seu caráter e vemos como uma existência marcada por opressão, violência e frustração conduzem Murray a trazer estes mesmos elementos para as vidas daqueles ao seu redor. Tão importante quanto a história de Murray (e em oposição direta a ela) está a de sua esposa, Audrey – ainda que tal fato só venha a se tornar claro dezenas de capítulos depois. Em sua única aparição além de Best Man Fall – o que levou o autor a definí-la como “a protagonista invisível” da série em uma entrevista –, ela provará, mesmo após tragédias equivalentes às sofridas pelo seu marido, a resiliência da alma humana em um momento fundamental da narrativa.

Os dois lados da moeda (ou liberdade goela abaixo)

Ragged Robin e Quimper. Os dois lados são um só. Arte de Brian Bolland.

Ragged Robin e Quimper. Os dois lados são um só. Arte de Brian Bolland.

A morte de Bobby Murray é somente um exemplo da violência dos métodos utilizados pelos Invisíveis, em particular King Mob. No segundo volume do título ­– que reinicia a numeração da revista e totaliza 22 edições – os protagonistas mudam-se para os Estados Unidos após o clímax de seu embate com Sir Miles (#22 a 24, Volume 1) e a série passa por uma mudança significativa de tom. Enquanto o primeiro volume, até mesmo em razão de sua ambientação britânica, possuía uma voz mais cerebral e elegante, o segundo emula um filme de ação hollywoodiano. Deixa, claro, para tiroteios, explosões, corridas contra o tempo e mortes, muitas delas graficamente chocantes. Mas se uma primeira leitura faz parecer que Morrison glorifica a violência, a verdade é que o escocês defende justamente o oposto.

Na visão do autor, a imposição de liberdade não é eticamente diferente de sua privação. A todo momento, as ações dos Invisíveis são moralmente questionadas e paralelos entre os dois lados do conflito são frequentemente traçados. Quimper, principal antagonista do segundo volume, pode muito bem ser uma versão deformada de John-A-Dreams, um dos mocinhos dado como morto no início da trama. Membros de uma facção agem em benefício da outra, muitas vezes sem sequer saber disso (e, em outras, sabendo). Ao final, Morrison apresenta Invisíveis e Arcontes como igualmente equivocados na abordagem fascista empregada na defesa de seus pontos de vista sobre o futuro da humanidade.

Segundo o escritor, a verdadeira emancipação é consequência direta do reconhecimento, por parte do indivíduo, de sua soberania sobre os rumos de sua vida. Apenas após assumirmos a responsabilidade por nossas decisões é que poderemos tomá-las com independência plena — e, assim, nos tornarmos quem de fato desejamos ser. O arco narrativo de Boy é o mais tocante exemplo de liberdade na série (pequenos e inevitáveis spoilers à frente, devo avisá-lo): abalada pela tortura sofrida nas mãos dos Arcontes em American Death Camp (#11 a 13, Volume 2) e cansada da violência ao seu redor, a personagem deixa a equipe em The Tower (#22, idem). Ela reaparecerá plenamente realizada no último capítulo com uma filha a tiracolo, em nítido contraste com a rotina de seus antigos companheiros revolucionários. Para o autor, entretanto, as escolhas de Boy são tão válidas quanto às dos demais protagonistas, na medida em que são feitas voluntariamente. Feminilidade e feminismo, vida doméstica e felicidade não são mostrados como conceitos natural e mutuamente excludentes, por mais que isso talvez contrarie as expectativas do leitor (e de boa parte das tendências da cultura pop atual).

Paz, ainda que tardia

Edith se banha no rio Ganges (Índia), pouco antes de sua morte. Arte de Sean Phillips.

Edith se banha no rio Ganges (Índia), pouco antes de sua morte. Arte de Sean Phillips.

Adjacente aos temas de emancipação da série está sua proposta pacifista, que emerge apenas no terceiro e último volume (doze edições publicadas no modelo de contagem regressiva, com sua numeração tendo início na edição #12 e concluindo com a #1). Agora ambientada ao redor do mundo, com passagens pela África do Sul, Inglaterra, Índia e Estados Unidos, a HQ nos apresenta um King Mob transformado, avesso a armas de fogo. Ao mesmo tempo, os Invisíveis substituem suas táticas terroristas por métodos baseados na obtenção e manipulação de informações. Mais do que posicionar-se contra a violência das edições anteriores, o Volume 3 destaca-se por celebrar a vida, como provam Karmageddon (#8 a 5) e, principalmente, o ultimo/primeiro número do título.

Em Karmageddon, acompanhamos os últimos dias de Edith Manning, membro dos Invisíveis desde meados da década de 1920 (conforme anteriormente mostrado em Sensitive Criminals, #8 a 10, Volume 2). Agora com 99 anos de idade, Edith decide morrer (perceba, também aqui, o poder de escolha do indivíduo), convicta de já ter realizado o que lhe cabia fazer na vida. Na companhia de King Mob, ela relembra alegrias, tristezas e os laços afetivos firmados com o passar dos anos, sempre com ternura. Novamente aqui, encontramos uma pessoa marcada por eventos traumáticos, porém incapaz de se entregar a eles. O roteiro de Morrison, tal qual a própria senhora Manning, prefere destacar os prazeres que vieram antes e não a melancolia da despedida.

O que nos leva a Glitterdammerung!, episódio final da HQ. Neste epílogo para a trama – o conflito entre Invisíveis e Arcontes é concluído no arco anterior, The Invisible Kingdom (#4 a 2, Volume 3) –, saltamos do ano de 1999 para 22 de dezembro de 2012. Você talvez se recorde da data como aquela em que o mundo supostamente acabaria, ao menos de acordo com algumas interpretações do calendário maia. Enquanto nós claramente nos desviamos desta bala, a profecia se realiza nos quadrinhos. Enquanto muitos celebram a chegada do fim nas ruas das grandes metrópoles, descobrimos o destino dos principais personagens. Todavia, por mais fascinantes que as resoluções sejam, é a exposição mais clara e direta do principal argumento da serie que torna o último número inesquecível.

(O leitor mais sensível a spoilers talvez prefira se manter distante do próximo parágrafo, já que a idéia central de Morrison vincula-se a um dos pontos principais do último número.) 

Afinal, nada pode ser mais claro do que destacar um dos personagens centrais para falar diretamente com o leitor, expondo o ponto de vista do autor sobre a grandeza potencial do ser humano. O fim do mundo que se aproxima a cada novo quadrinho representa, na verdade, a transição da nossa espécie para a sua próxima etapa em sua existência. Nela, todos somos uma única entidade e, ao mesmo tempo, cada um de nós é capaz de criar a sua própria realidade pessoal. É isso o que Morrison celebra ao final: a expressão máxima da individualidade ao mesmo tempo em que a humanidade se une de forma definitiva e indivisível. Mais uma vez, o escritor apanha dois conceitos aparentemente díspares e defende a sua coexistência.

“Não há diferença entre destino e livre arbítrio”, em trecho do monólogo final da série. Arte de Frank Quitely.

A última página do título nos remete ao seu começo, em particular Arcadia (#5 a 8, Volume 1). Em uma das sub-tramas do arco, acompanhamos alguns momentos da vida do poeta romântico inglês Percy Shelley e sua esposa, Mary (conhecida como a autora de Frankenstein, 1818). Dentre eles, destaca-se o luto do casal face à morte de uma de suas filhas. Após finalmente aceitar sua perda e entender que ainda possui muito pelo que se viver, o Percy de Morrison conclui que a chave do paraíso se esconde dentro de cada ser humano, faltando-nos somente a maturidade para enxergá-la. Sobre o assunto, ele afirma, apontando para a própria têmpora:

“Onde estão o amor, a beleza, e a verdade que buscamos senão em nossas mentes? A terra dourada, eternamente nova? O lar de todos os corações, intocado pelo tempo e pela dor?

Aqui.

Esperando que cresçamos, o reconheçamos e voltemos para casa.”

Considerações finais

Para os leitores interessados em aprofundar-se na obra, existem ao menos dois livros sobre a série, os quais detalham as referências utilizadas pelo autor, oferecem interpretações acerca de seus pontos mais abstratos e montam o quebra-cabeças do enredo: Anarchy For The Masses e Our Sentence Is Up. Há, ainda, excelentes sites com a mesma proposta, como o The Bomb. Mas, se este for seu primeiro contato com Os Invisíveis, não permita que isso o intimide. Tampouco deixe que o formato o desistimule. A HQ oferece uma leitura intelectualmente desafiadora e satisfatória, com amplas recompensas para aqueles que com ela permanecerem até seu final — ao contrário do que minha comparação inicial com Matrix possa sugerir.

Não deixa de ser surpreendente que um quadrinho nascido, dentre outros propósitos, da intenção de condensar a ansiedade do final do milênio passado se mantenha tão atual, uma década e meia após sua conclusão. Talvez isso seja fruto das nossas suspeitas, a cada dia melhor embasadas, de que este milênio não nos reserva muito além de outros mil anos da mesma paranoia. Muito mais provável, entretanto, seja porque Os Invisíveis, por trás de sua estilosa postura pop, trate de necessidades humanas primordiais, instigando seus leitores na direção de uma reflexão pessoal. Liberte-se, convida Grant Morrison por meio dos seus personagens. Seja quem você quer ser. Afinal, o Grande Irmão está de olho em você. Aprenda a tornar-se invisível.

Os quatro encadernados já lançados em português estão disponíveis na loja virtual da Panini Comics. As edições em inglês podem ser encontradas no ComiXology ou em livrarias virtuais como a Amazon.

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Sobre Revista Salsaparrilha (40 artigos)
Lê, vê, joga e cura reumatismo.

1 comentário em Liberdade, 15 anos depois

  1. Comprei os 4 volumes (o 1º na Comixology pq tinha acabado nas bancas e os outros 3 a edição em português da Panini), mas ainda nem comecei a ler. Apesar de ter o aviso no início de não ter spoiler, vou deixar pra ler o texto todo depois de ler pelo menos o 1º volume.

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